Um cinema para festival

Um cinema para festival

 

Por Mahomed Bamba*

O cinema africano continua sendo feito com grande dificuldade, mas os festivais dedicados exclusivamente a filmes africanos multiplicam-se nos quatro cantos do mundo. Esses festivais internacionais, que poderiam alavancar o lançamento comercial dos filmes realizados por cineastas africanos, acabam funcionando apenas como única oportunidade de exibição pública. Os maiores festivais europeus são um termômetro que aferem a saúde do cinema feito na África: quando há mais filmes africanos selecionados no festival de Cannes, por exemplo, isso é percebido pelos críticos como um sinal positivo da dinâmica da produção naquele ano.

Ao contrário, a ausência dos filmes africanos da seleção oficial do maior festival do mundo durante dois anos consecutivos foi percebida como um sinal alarmante da situação que vem atravessando o cinema africano. A relação obsessiva dos cineastas africanos com os catálogos e os calendários dos festivais confirma uma das exceções do cinema africano: trata-se de um cinema de festival e para os festivais.

Desde que os cineclubes desapareceram, os festivais tornaram-se o campo de encontro e de debate sobre os filmes de outras partes do mundo. Nascem, portanto, de uma vontade legítima de mostrar filmes que nunca teriam acesso às salas ocidentais. A história dos cinemas africanos é inseparável da existência desses espaços reservados à exibição de filmes provenientes de cinematografias ditas periféricas.

Para se fazer conhecer, em um primeiro momento, o filme africano precisou ir ao encontro dos festivais internacionais. Em seguida, são os festivais que viriam ao encontro do filme africano, já que despertavam a curiosidade dos cinéfilos ocidentais. Se Cannes é considerado o maior festival do mundo é, em parte, devido à abertura proporcionada por seus organizadores às produções provenientes das cinematografias do sul.

As mais gloriosas páginas da história do cinema africano foram escritas no Festival de Cannes. Desde sua criação, há mais de 60 anos, o festival francês vem reservando um lugar especial aos filmes dos cineastas africanos. O reconhecimento e a consagração do cinema africano começaram com o polêmico Chronicle of the burning years/Chronique des années de braise (Palme d’Or, 1975), do argelino Mohamed Lakhdar-Hamina. Depois foi a vez do cineasta Souleymane Cissé, de Mali, ganhador do Prix du jury, por Brightness/Yeelen (1987).

Dois anos depois, Idrissa Ouedraogo, de Burkina Fasso, arrebatava o mesmo prestigiado prêmio do júri com o filme The law/Tilaï (1989). Além destes premiados cineastas, cabe mencionar os casos de cineastas africanos que freqüentam de forma assídua o maior festival do mundo. Os pioneiros foram Paulin Vieyra, em 1963, com o seu filme Lamb. Ousmane Sembène apresentou Black girl/La noire de… em 1964. Depois de quase uma década, graças ao talento do diretor senegalês Djibril Diop Mambéty, o cinema africano voltava para a seleção oficial do festival de Cannes em 1973, na categoria Quinzaine des réalisateurs, com o filme até hoje aclamado por sua audácia estética, Journey of the hyenas/Touki Bouki. O mesmo Djibril Diop Mambéty voltou a Cannes em 1992 com o seu segundo longa-metragem, Hienas/Hyènnes.

Durante todo esse tempo, os cineastas do Magreb também contribuíram para o reconhecimento do cinema africano em Cannes. Em 1992, Bezness, um filme de Nouri Bouzid, cineasta da Tunísia, foi selecionado na Quinzaine des réalisateurs. Depois de ser recompensado com o Tanit d’Or do festival de Cartagena na Tunísia, Halfaouine: child of the terraces/Halfaouine, de Férid Boughedir, foi selecionado, em 1990, na Quinzaine des réalisateurs.

A presença de todos esses cineastas em Cannes simboliza a vitalidade do cinema africano. Durante 15 dias de festival, os filmes africanos são vistos pela crítica internacional e competem com filmes de outros países. Mas, além da competição e da consagração, Cannes é também uma formidável oportunidade para os cineastas africanos viabilizarem financeiramente a circulação comercial de seus filmes e fazerem contato com produtores para futuros filmes.

Mesmo não dispondo dos mesmos recursos colossais de Cannes, vários pequenos festivais vêm promovendo filmes africanos no exterior. Seus organizadores se contentam, geralmente, com o público formado pelos habitantes de uma determinada localidade que não são forçosamente cinéfilos nem conhecedores do cinema africano. Esses eventos de pequeno porte estão inscritos na agenda de todos os cineastas africanos. É o caso do Afrika Filmfestival, que ocorre anualmente, desde 1996, na cidade de Louvain.

A projeção dos filmes e vídeos da África e da diáspora nesta província belga determinou, inclusive, as formas de promoção e de cooperação entre a Bélgica, a região do Brabant flamengo e a África. Para os organizadores, o objetivo é duplo. Permitir, a princípio, ao público ocidental descobrir “a maneira como os próprios africanos se vêem e julgam sua situação, sua história e seus contatos com a Bélgica (Europa)”. Isso favorece um maior diálogo e compreensão entre ambos os lados. A cada ano o festival de Louvain desenvolve temáticas socioculturais que giram em torno da migração, da situação das mulheres africanas no cinema e do passado colonial belga. O segundo objetivo é mais humanitário.

Além da programação normal dos filmes africanos em salas de cinema e centros culturais, o festival tem atividades ligadas à cooperação para o desenvolvimento: As vozes e as imagens dos colaboradores africanos das instâncias oficiais e não oficiais (ONGs) se fazem ouvir ou ver. Pela criação de canais de distribuição e de representação para os produtores de filmes africanos, o festival tenta contribuir para a manutenção dessa produção cultural.

O que todos esses festivais têm em comum é a postura política e militante que caracteriza a ação de seus organizadores. Demonstra uma vontade de passar de um sentimento de curiosidade, de benevolência e de exotismo em relação aos filmes africanos, para uma relação espectatorial mais engajada que, em alguns casos, beira o “terceiromundismo”. Festivais como o African Film Festival (EUA), o African Diaspora Film Festival (EUA), o Afrika Filmfestival (Bélgica) e o Festival de Cannes têm um mesmo objetivo: contornar o insolúvel problema de distribuição e circulação dos filmes africanos e promovê-los junto às populações ocidentais.

Mas a excessiva importância dos festivais fez com que eles acabassem determinando o valor de um filme e as opções estéticas e temáticas dos cineastas africanos. Muitos filmes africanos premiados são acusados de “cultuarem falsos valores e lugares-comuns que oferecem uma imagem artificial e truncada da África”. O peso dos festivais no percurso de um filme africano é hoje objeto das mesmas críticas feitas ao desvirtuamento das cinematografias, provocado pela ajuda financeira da cooperação internacional. Férid Boughedir atribui os problemas estéticos do cinema africano contemporâneo àquilo que chama de “festivalidade”, isto é, a atitude que leva os cineastas africanos a formatar seus filmes de acordo com as normas e as expectativas do público dos festivais (o seu único público).

Os cineastas africanos são reféns da “religião que é a cinefilia”. Ora, quando se sabe que o “cinéfilo não gosta forçosamente de um filme pelo que o diretor quis dizer, mas pelo que ele (cinéfilo) quer encontrar neste filme”, é como se todo o cinema africano fosse refém do olhar e das expectativas do espectador ocidental. Sendo assim, várias gerações de cineastas africanos acabaram por confundir pesquisas estéticas reais com puro estetismo para agradar os críticos ocidentais.

*Trecho do artigo de Mahomed Bamba do volume I – África, da coleção “Cinema no Mundo: Indústria, política e mercado”, uma coedição do Instituto Iniciativa Cultural e Escrituras Editora.

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