Cinema sul-coreano e os mercados

Cinema sul-coreano e os mercados

Por Miriam Ross*

Embora exista uma história documentada do cinema sul-coreano que inclui cineastas coreanos pioneiros e produtores e diretores que trabalhavam sob o domínio colonial japonês – produção posterior à Guerra da Coréia e cinema político durante o regime militar dos anos 1970 e 1980 –, a atividade cinematográfica do país só foi reconhecida em cenário mundial nos últimos anos. Ao considerar o surgimento do cinema sul-coreano no mercado internacional, cabe levar em conta o modo como organizações externas aos processos de produção cinematográfica (companhias de distribuição, festivais internacionais, sites de aficionados em línguas estrangeiras e jornalismo) constroem sua própria versão de um cinema coreano em um contexto internacional e o efeito disso na promoção e na venda de filmes.

Primeiramente, contudo, vale observar como o cinema sul-coreano sempre existiu sob controles externos aos objetivos individuais dos cineastas. Antes da campanha de globalização oficial conhecida como segyehwa (iniciada em 1994), a Coréia do Sul era fechada, conhecida internacionalmente como reino eremita, e suas indústrias culturais eram afetadas pelo freqüente domínio militar.

Apesar de o governo coreano ter financiado e encomendado somente um pequeno número de filmes antes da globalização (principalmente peças de propaganda), pode-se dizer que a maioria das obras cinematográficas produzidas desde a introdução do primeiro Ato Cinematográfico Coreano, em 1962, até o fim definitivo da censura, em meados dos anos 1990, esteve, de algum modo, sob o controle do Estado. Os três modos pelos quais isto ocorreu foram: cotas de produção e importação de filmes, estratégias de apoio e censura imposta pelo governo.

Cotas

Como meio de controlar a indústria cinematográfica na Coréia do Sul, o governo introduziu vários atos e leis para o setor a partir de 1962. Duas das principais conseqüências desses atos, particularmente a partir dos anos 1970, foram a restrição da importação de filmes estrangeiros e, simultaneamente, a implementação de um regulamento que dedica uma porcentagem do total de tempo de exibição a filmes coreanos. Aparentemente, esta parecia ser a condição ideal para o florescimento de uma indústria cinematográfica local, pois a concorrência, particularmente dos filmes de grande orçamento e alta qualidade de Hollywood, seria reduzida. No entanto, há um consenso geral de que várias cláusulas sobre as cotas de importação tiveram o efeito contrário e sufocaram a produção de filmes sul-coreanos de qualidade.

Com efeito, algumas companhias cinematográficas independentes acabaram expulsas do mercado por regulamentações de licenciamento, exigindo que elas possuíssem grande quantidade de equipamento e espaço de estúdio; apenas algumas grandes companhias permaneceram (PAQUET, 2005).

A principal cláusula de importação decretava que estas companhias cinematográficas produzissem uma determinada cota de filmes domésticos por ano, a fim de ganhar licença. Mas a importação de filmes estrangeiros, particularmente de Hollywood, mostrou-se muito mais lucrativa que a produção de filmes coreanos. Por isso, as companhias cinematográficas produziam filmes domésticos de modo barato e rápido, com o único propósito de cumprir a cota que lhes garantia uma licença de importação (STANDISH, 1994). O resultado no mercado local foi uma série de filmes de baixa qualidade que pouco despertaram o interesse do público nacional.

Durante esse período, as cotas governamentais também pouco ajudaram a promover a Coréia do Sul no cenário internacional. Além da produção de filmes domésticos, as licenças de importação de filmes estrangeiros eram condicionadas à exportação de determinado número de filmes sul-coreanos. O impulso de exportação, portanto, foi deixado nas mãos das companhias cinematográficas, mais preocupadas com a importação que com o destino dos filmes nacionais. Por isso, freqüentemente estes filmes eram vendidos a baixos preços a holdings estrangeiras e armazenados em vez de serem distribuídos no exterior (LENT, 1990).

Censura

A censura foi o maior obstáculo ao desenvolvimento do cinema coreano desde sua origem, tanto que é quase impossível descrever a história do cinema na Coréia do Sul […] sem discutir a influência da censura. (PARK, 2002, p. 120)

O controle do Estado sobre a produção cinematográfica sul-coreana pode ser comprovado no modo pelo qual censurou o conteúdo dos filmes desde o Motion Picture Act (Ato Cinematográfico) de 1962, até o fim da censura governamental, em meados dos anos 1990. Durante os regimes militares, havia regulamentações rígidas para garantir que os filmes não mostrassem o governo ou suas políticas sob um ângulo desfavorável. Isso era apoiado pela Lei de Segurança Nacional, que fora destinada inicialmente a proteger o Estado da ameaça da Coréia do Norte comunista, mas apresentava rígidas implicações para qualquer material, fosse ele jornalístico ou cultural, considerado crítico ou contrário às políticas do Estado (KIM, 2006).

Esta situação atingiu o clímax nos anos 1970, quando os filmes tinham de ser submetidos à comissão de censura antes e depois da produção. A comissão de censura também tinha o poder de intervir a qualquer momento durante a produção, se acreditasse que os cineastas estavam envolvidos na produção de material considerado inadequado (LEE, 2000). Ainda nos anos 1990, filmes como Black Republic/Keduldo urichurum (Kwang-su Park, 1992) só foram exibidos depois da remoção da atividade antigovernamental da narrativa (PARK, 2002).

O modo como a comissão podia intervir em vários níveis significava que o governo, embora não financiasse e apoiasse certos filmes diretamente, exercia um grau de controle sobre seu conteúdo. Ao longo de todo o período de censura, houve filmes que criticavam o governo e continham material explicitamente político, produzidos por grupos cinematográficos radicais e exibidos em sessões às ocultas em lugares como campi universitários (ibidem).

No entanto, como as exibições eram ilegais e freqüentemente levavam ao processo judicial dos cineastas e organizadores, elas não se adequavam a redes de distribuição acessíveis à maioria dos espectadores sul-coreanos. Embora seja injusto negar a esses filmes um lugar no conjunto do cinema nacional, eles não constituíram uma parte visível do cinema sul-coreano e raramente têm sido disponibilizados no exterior.

Apoio financeiro

Como mencionado anteriormente, à exceção de filmes de propaganda direta, o governo sul-coreano não financiou e apoiou filmes específicos abertamente. Alguns prêmios e concessões foram entregues para encorajar os cineastas a produzir filmes de qualidade, mas as companhias cinematográficas continuaram arcando com a maior parte do financiamento. Temendo que projetos fossem cancelados ou interrompidos se contivessem material reacionário, muitos produtores não se dispunham a investir em projetos controversos (ib.). Isso afetou também a produção de filmes de baixa qualidade, já que os financiadores rejeitavam apoiar não só filmes politicamente críticos, mas qualquer filme, pois a capacidade dos censores de intervir e suspender as filmagens transformava a produção cinematográfica em investimento de alto risco.

Transformação nesse contexto devem-se não só ao relaxamento das leis de censura e cotas de importação, mas também às várias outras mudanças financeiras ocorridas a partir do final dos anos 1980. Com o sucesso da economia sul-coreana, muitos dos conglomerados chaebols obtiveram fundos para investir e mesmo ajudar a produzir vários filmes1. Com isso, o orçamento dos cineastas aumentou consideravelmente, assim como a qualidade dos filmes. Embora seja difícil delinear uma relação causal, críticos acreditam que os chaebols influenciaram o conteúdo dos filmes, que passaram a seguir as fórmulas comerciais dos produtos de Hollywood (DAL, 2006).

Se isto for verdade, indica a passagem de um cinema moldado pelo Estado para um cinema influenciado diretamente por práticas de produção cinematográfica e interesses industriais internacionais. Outras estratégias de investimento financeiro, como os fundos Netizen2, as pré-vendas a países como o Japão e o financiamento por parte de outros países, ajudaram o cinema sul-coreano a se afastar da situação anterior, na qual dependia do endosso de idéias e práticas governamentais para a produção de filmes domésticos.

Admitir que o governo – diretamente, via censura, ou indiretamente, via cotas de filmes – exercia controle sobre o cinema não é negar a importância dos cineastas e de suas contribuições artísticas individuais, ou mesmo o modo como o público pôde interpretar as mensagens do governo. Na verdade, reconhecer a influência estatal, é afirmar que o cinema sul-coreano foi limitado em seu escopo por certos fatores que também restringiram a possibilidade de divulgá-los e exibi-los no exterior.

*Trecho do artigo de Miriam Ross publicado no volume III – Ásia, da coleção “Cinema no Mundo: Indústria, política e mercado”, uma coedição do Instituto Iniciativa Cultural e Escrituras Editora.

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