Um Outro Começo

Um Outro Começo

 

Por Clarisse Goulart e Alessandra Meleiro

A 5ª. edição do Festival do Filme Documentário Dockanema, que ocorreu em setembro de 2010 na cidade de Maputo, em Moçambique, mostra que o evento continua firme em sua intenção de impulsionar a produção e a exibição de documentários no país.

Paralelamente ao Festival, a Universidade Eduardo Mondlane recebeu o Seminário Internacional “Para uma História do Cinema em Moçambique”, que reuniu pesquisadores da Bélgica, Brasil, Inglaterra, Alemanha e Portugal para reflexões em painéis como “Dos pioneiros do cinema à resistência política”, “Apontamentos para uma cinematografia moçambicana” e “Imagens em movimento como ato de cultura e vanguarda”.

Diferentemente de outros países africanos, Moçambique teve, mesmo antes de sua independência, uma relação privilegiada com o cinema. A nova República Popular de Moçambique, tornada independente em 1975, iniciou um processo de transformação política, social e cultural, em muito inspirado nos exemplos soviéticos e cubanos.

A Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), visando cumprir objetivos políticos, investiu fortemente na produção de filmes, especialmente no gênero documentário, e soube utilizar o cinema como meio de afirmação e unificação – em um país que conta com 28 línguas reconhecidas e muitos dialetos – bem como meio de pressão diplomática.

Os primeiros filmes contra o colonialismo português em Moçambique foram feitos por realizadores estrangeiros a convite da Frelimo, transformando o país em um laboratório de experiências para Ruy Guerra, Jean Rouch, Jean-Luc Godard, Murilo Salles, José Celso Martinez Correia, Santiago Alvarez, e muitos outros cineastas, atraídos a Maputo para filmar com o apoio do governo. Suas passagens deixaram marcas não apenas em Moçambique, mas também em terras lusófonas e demais territórios africanos.

A exibição de filmes moçambicanos tornou-se também uma prioridade para o governo no período pós-independência. Em 1978 a pequena indústria de distribuição e exibição é nacionalizada, e é criado o “Cinema Móvel”, trinta e cinco carros equipados para projeções itinerantes que levavam às aldeias os filmes intitulados “Kuxa Kanema” (Nascimento do Cinema). O cinema móvel difundia o discurso do governo em zonas rurais, bem como propiciava a descoberta do cinema para platéias de regiões remotas.

Atualmente, Moçambique vive uma situação bastante dramática no seu setor de difusão audiovisual e carece de uma reestruturação da indústria e do mercado de cinema local. Além de uma presença maciça e quase indissolúvel da pirataria, o país, que já teve cerca de 120 salas de cinema operando simultaneamente, hoje tem apenas três funcionando regularmente e sendo operadas de forma comercial. As três salas pertencem ao grupo português Lusomundo que, com raras exceções, exibem filmes americanos mainstream e sucessos do cinema português.

Para uma população de aproximadamente 20,5 milhões de habitantes e crescimento demográfico, no período de 4 anos, de 2,4% em média, não existe, portanto, nenhuma opção de sala de cinema com conteúdo variado e independente, como filmes africanos, europeus ou, tampouco, de outros continentes. Os filmes feitos em Moçambique hoje não dispõem de locais para serem exibidos comercialmente em seu próprio país, portanto não chegam até seu público primário e, consequentemente, não geram renda dentro de seu mercado.

Dockanema surge, então, como uma tentativa de restabelecer o ambiente político e cultural para o desenvolvimento do cinema no país – que sofreu um duro golpe no período da guerra civil (1976-1992), fatalmente determinando o cenário que viria a seguir.

Apesar de não contar com apoio de instituições públicas – que insistem em ignorar o impacto nacional e internacional da iniciativa – o Festival de Documentários desempenha relevante papel para a formação de platéia no país, além de disseminar novas perspectivas do documentário africano e mundial. Em oito dias de evento foram exibidos mais de oitenta filmes.

Alternativas de produção, como aquelas trazidas pelo formato digital, nas palavras do produtor moçambicano e idealizador do Festival Pedro Pimenta, podem “ser um fator decisivo na difusão das múltiplas vozes que se exprimem pelo documentário”. Bom não esquecer que foi Godard o primeiro cineasta a usar em Moçambique a tecnologia do vídeo como uma alternativa viável (economicamente) para expressar idéias. Muitos realizadores inspirados nas novas práticas trazidas por Godard a Moçambique, como Licínio Azevedo (“Desobediência”, 2001) filmaram longas-metragens inteiramente em vídeo – agora em suporte digital.

Cinema Digital

Dockanema também abrigou o encontro profissional “Cinema Digital: uma opção válida para a difusão Audiovisual em Moçambique”, que reuniu especialistas brasileiros e portugueses em cinema digital, especialistas em telecomunicações de Moçambique, instituições financeiras, governo e exibidores moçambicanos para discutir a transição digital, ou seja, a substituição do projetor em película 35 mm para a exibição digital nas salas de cinema.

O Encontro “Cinema Digital” abrigou a apresentação de um Estudo de Viabilidade para a Implantação de uma Rede de Cinemas Digitais em Moçambique, que mapeou a situação vivida pelo mercado cinematográfico do país e os avanços do cinema digital no mundo.

O estudo de viabilidade para implantação de uma rede de cinemas digitais é parte do projeto Doc-ACP (Africa, Caribe e Pacífico) por ter relação direta com a questão da distribuição e difusão de filmes em salas de cinema. O estudo tem como apoiador direto, além da Associação Al Tarab, responsável pelo Festival de Cinema Africano de Tarifa (Espanha), o Festival Dockanema (Moçambique), além da Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID).

O Estudo de Viabilidade fez-se necessário a partir do momento em que surgiu um panorama favorável para a instalação de salas digitais: o projeto do governo para a implantação de uma rede de fibra ótica no país, levando internet de banda larga para todo o território nacional e possibilitando assim a operação do cinema digital, que consiste no envio dos filmes digitalizados para os cinemas conectados à rede.

Os esforços do programa ACP Films para o desenvolvimento e estruturação da indústria de cinema e audiovisual nos países de ACP (África, Caribe e Pacífico) e a necessidade de se estimular a indústria e o mercado de cinema no país, adequando-o ao contexto audiovisual em que grande parte dos países de todos os continentes se encontra hoje, foram também fortes impulsionadores.

Relevantes para a construção do estudo foram as experiências bem-sucedidas ocorridas em outros países, especialmente a do Brasil, reconhecido pela implantação de uma rede de cinemas digitais voltada para o cinema independente, que mudou o curso do mercado audiovisual local.

Moçambique é atualmente um terreno bastante fértil para a discussão que foi proposta: em 2011 estará concluído o projeto do governo de levar a rede de fibra ótica para todas as capitais distritais do país (são 128 ao todo), e isso poderá viabilizar de maneira mais simples e menos custosa o envio de filmes a partir de uma central controladora de conteúdos digitais. A possibilidade de integração dos serviços pela telefonia e pelo audiovisual, e a distribuição de um mesmo cabo para residências e outros locais, cria novos horizontes e expectativas.

Atingir o público de baixa renda que não tem acesso aos cinemas comerciais; difundir a produção de conteúdos regionais; valorizar a exibição de filmes moçambicanos e incentivar a difusão de filmes procedentes de outras origens que não são comumente aceitos pelo circuito comercial são metas que devem ser propostas pelas políticas culturais do Governo de Moçambique.

Apesar da implantação da rede de cinemas digitais, em muitos países, viabilizar-se por iniciativas do próprio mercado, em alguns casos o governo participa do processo através da escolha da definição do padrão a ser adotado, ou mesmo oferecendo incentivos financeiros à pesquisa e compra de equipamentos.

Um dos objetivos do “Estudo de Viabilidade para a Implantação de uma Rede de Cinemas Digitais em Moçambique” foi justamente o de mobilizar o governo para a idealização e criação de políticas públicas de incentivo ao cinema digital, bem como a proposição de uma adequada arquitetura institucional envolvendo políticas públicas,  cooperação internacional e instituições financeiras locais.

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Artigo originalmente publicado com o título “Um outro começo” na Revista Reserva Cultural, n. 10, 2011, Ed. Lazuli, São Paulo, pp. 64-67.