Enredo em curto-circuito

Enredo em curto-circuito

 

Por Ivonete Pinto

Quando lançou “Five” (2003), Abbas Kiarostami prometeu aos mais chocados com a total ausência de história e de personagens no filme, que retornaria ao cinema de enredo. Depois dele, o diretor iraniano ainda fez  outros trabalhos menores, como o episódio de “Tickets” (2005, filmado na Itália), mas no  lugar do prometido longa “com enredo”  veio  “Shirin” (2008), onde  apareciam apenas planos fechados em rostos de mulheres que assistiam a um filme. Mesmo com boa vontade, não dava pra dizer que ali havia algum enredo. Graças – ou não – a Juliette Binoche, em “Cópia Fiel” (Copie Conforme, 2010) Kiarostami nos conta uma historinha. O diminutivo é porque, a despeito da importância que pode ter o tema em torno dos conflitos de um casal e da discussão sobre o que é original na arte, é em outra dimensão que vamos buscar a relevância do novo filme. E a encontraremos na forma como Kiarostami nos conta esta historinha.

Recorrências

Os filmes de Kiarostami podem ser examinados através de temas e elementos de linguagem que costumam voltar. Entre as recorrências mais evidentes, encontra-se em papel de destaque os elementos da natureza. Elementos estes que não devem ser dissociados da morte, o evento mais inarredável da natureza. Em “Cópia Fiel” esta morte é bem mais metafórica do que em “Gosto de Cereja”  (Taam-e-Gilas, 1997), mas pode ser lida na finitude da relação do casal protagonista. No entanto, os elementos da natureza que mais ganham corpo em “Cópia Fiel” são os do mundo material mesmo, principalmente as árvores, que aparecem em tantos filmes de Kiarostami, como “Onde Fica a Casa do Meu Amigo” (Jane-ye dust koyast?, 1987), “Através da Oliveiras” (Zir-e Darakhatan Zeyton, 1994), “O Vento nos Levará” (Bad Maara Jahad Bord,  1999), e até em “Gosto de Cereja”. Neste último, a árvore não aparece, mas é lembrada como o lugar onde o senhor Badii gostaria de ser enterrado.

As árvores estão na sua vasta obra de 38 filmes (entre curtas e longas) como uma questão filosófica da natureza. Às vezes ganham vida na forma de uma variação. Como em “Five”, por exemplo, onde o primeiro plano tem como “personagem” um toco, um pedaço de galho, algo que já foi árvore. As árvores aparecem como símbolos imponentes da natureza nas fotografias de Kiarostami, que resultaram nas várias exposições e nos poemas que escreveu. Youssef Ishaghpour interpreta a árvore como um ente cósmico “vínculo da terra com o céu, eixo do mundo nas antigas mitologias… agora a árvore talvez seja o que nos restou…” (Abbas Kiarostami – Duas ou três coisas que sei de mim. O real, cara e coroa, 2004, p. 89)

A “natureza” de Kiarostami também pode se apresentar como algo que em princípio é o oposto dela, da essência humana, mas que no estilo de seu universo dramático é algo orgânico: a presença dos carros. Desde a trilogia de Koker (Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, A Vida Continua e Através das Oliveiras), que o carro é personagem obrigatório nos filmes de Kiarostami.

Principalmente depois de “Dez” (Dah, 2002), o assunto surge com frequência nas entrevistas e o diretor não se cansa de dizer que a recorrência é natural, pois passa grande parte de sua vida dentro de automóveis. Em “Dez sobre Dez” (Ten on Ten 2004), um documentário feito para explicar “Dez”, ele fala todo o tempo para uma mini-câmera instalada no carro. O filme é ele e o carro, uma relação cujas limitações de espaço induzem a uma decupagem mínima, que por sua vez induz a um cinema longe dos circuitos comerciais (a plebe ignara e os intelectuais que levam Matrix a sério têm crises de nervos ao se depararem com imagens paradas).

Ao lançar mão do automóvel como extensão de seus personagens de carne e osso, situações também são repetidas, como pessoas caminhando ao longo dos trajetos percorridos e o ponto de vista dos personagens dentro do carro comentando coisas que o público via de regra não vê.

Jean-Claude Bernardet, em “Caminhos de Kiarostami” (2004), chamou esta recorrência de “deambulação automobilística” e lembrou, claro, de “Viagem à Itália” de Rosselini (Viaggio in Italia, 1954): casal em crise, predominância de cenas no interior de um automóvel, circunstâncias que surgem ao acaso e podem gerar várias interpretações ligadas aos personagens.

Em “Cópia Fiel”, noivos que posam para fotografias típicas de noivos e a festa de casamento são óbvios neste sentido. A diferença está em que enquanto tínhamos a personagem de Ingrid Bergman apenas observando o que via pelo caminho, aqui temos Juliette Binoche tentando entrar na vida das pessoas, querendo entender como se formam estes casais. Parece que busca entender o fetiche do casamento. Em meio aos anônimos que cruzam seu caminho, entra em cena o roteirista Jean-Claude Carrière, que poderia representar apenas um comentário, uma homenagem ao homem-cinema que ele é.

Mas o fato de Carrière estar acompanhado da esposa e entre eles surgir uma certa diferença, uma certa irritação pelo tempo de convívio (é o que entendemos), Kiarostami insere o casal no mesmo universo dos noivos recém casados, só que casados há mais tempo. Tudo funcionando como uma espécie de ilustração às observações do roteirista Kiarostami. Uma homenagem a um amigo, sem dúvida, como o é a intercalação de inglês, francês e italiano que ouvimos, que lembra a pajelança de idiomas do amigo Manuel de Oliveira de “Um Filme Falado” (2003).

Dez

Da própria filmografia de Kiarostami, é com “Dez” que o filme mais dialoga. Como se “Cópia Fiel” fosse uma versão daquele. Embora agora estejamos na Europa, olhando para um casal moderno e laico e que a personagem esteja com um vestido decotado, vejamos as semelhanças.

Assim como a motorista de “Dez”, a personagem de Binoche dirige o automóvel e conduz os diálogos, fala sem parar, numa verborragia um tanto neurastênica. Ela, assim como a motorista de “Dez” (Mania Akbari) não tem nome, e é creditada como “Ela”, como sendo “todas as mulheres”.  Em “Dez”, a personagem está separada, vivendo um segundo casamento. Em “Cópia Fiel” não sabemos o que aconteceu, mas a crise entre o casal é explícita. Nos dois filmes, ambas protagonistas sentem-se acuadas, incomodadas, sufocadas e com problemas com o filho. O filho de cada uma está entre a infância e a adolescência, carregando as idiossincrasias das duas fases. Meninos que, em ambos os casos, são usados pelos ex-maridos, que tentam colocá-los contra a mãe (em Cópia Fiel, de maneira mais suave e supostamente mais civilizada).

No filme rodado no Irã, Kiarostami explorava a linguagem através da estrutura rígida dos 10 blocos feitos em dez planos-sequência e mandava às favas o clássico plano/contra-plano nos diálogos. Já em “Cópia Fiel”, o artifício da linguagem está em promover uma virada. No 53º minuto, tudo o que sabíamos dos personagens é desmentido por eles mesmos. Tudo o que vimos – um escritor (William Shimell) que encontra pela primeira vez a dona de um antiquário na Toscana – não passa de invenção e eles são de fato casados há 15 anos. Isto, numa leitura plana.

O imbróglio em Kiarostami está sempre na expressão “de fato”, que, de fato, não pode ser usada inocentemente. Nada o que parece, é. Tudo pode vir a ser. Desde a ilusão provocada por um ovo sendo frito nos 52 segundos do plano-sequência que o diretor assinou para “Lumière & Cia” (Lumière et compagnie, 1995), passando pelo corte proposital no som de “Close-up” (Namay-e Nazdik, 1990), temos que desconfiar de tudo. Seguindo esta lógica, é recomendável que esta interpretação pura e simples de que Kiarostami está blefando até a metade do filme, precisa ser revista. A aposta talvez possa ir no sentido de que  o que vimos nos primeiros 53 minutos era a história deles, só que no tempo passado. O detalhe que nos confunde é que Kiarostami não usa elipse, não muda de atores e nem os faz envelhecer para que o enredo seja contado de forma familiar ao espectador. O que impede de pensarmos que o casal se conheceu como aparece no filme?

Em “Cópia Fiel”, o imbróglio está na ausência de uma pirotecnia qualquer que indique a elipse: ok, aqui temos uma passagem de tempo e este mesmo casal agora rememora a forma como se conheceu. Mas e onde fica toda a discussão teórica do filme em cima do que é cópia e do que é original? Fica na mesma camada em que ficavam as histórias que acompanhamos com atenção em “Dez”. Num plano que não é um “segundo” plano pois não está, numa escala, em posição inferior. Trata-se apenas de uma outra camada.

Elipse negada

O “nó”, a sensação de desconforto provocado por esta virada, eventualmente pode levar parte do público a uma certa irritação, pois se sente enganado ao não encontrar explicações para a pergunta “afinal, eles já se conheciam ou não?”. Chega a ser engraçado se compararmos a outras situações oferecidas pelo cinema e que o público não parece incomodar-se tanto. Só para lembrar, em “Noturno Indiano” (Alain Corneau, 1989), o personagem procura “um amigo” que só ao final, temos indícios, era ele mesmo. Nos filmes espíritas, então, a suspensão do descrédito fica totalmente à vontade e todos aceitam que em “Sexto Sentido” (The Sixth Sense, M. Night Shyamalan, 1999), por exemplo, o protagonista já havia morrido.

Na verdade seria bem mais fácil de aceitar a hipótese de que em “Cópia Fiel”, toda a primeira metade aconteceu – escritor inglês conhece francesa na Itália –, o tempo passa, eles entram em crise e têm aquele final de rememoração. Como não há no filme um recurso qualquer de linguagem que assinale passagem de tempo, em função de uma espécie de elipse negada o enredo entra em curto-circuito e quem leva o choque é a plateia. Obviamente, como Kiarostami não veio para explicar, mas para confundir, a encenação é falsamente realista e coloca o casal num tempo falsamente contínuo.

Naturalmente, se não houvesse este truque, seu filme seria apenas um insosso “Antes do Pôr-do-sol” (Before Sunset, Richard Linklater, 2004), parte I e parte II, mas é a brincadeira com as possibilidades do cinema que  provoca o deleite da plateia (uma certa plateia, ao menos).

É possível apostar que mais uma vez Kiarostami joga com a linearidade e o que incita a confusão é que ele coloca passado e presente juntos, sem “figurino de época”. No mais, é a boa e velha discussão sobre o que é falso e o que é verdadeiro, que começou lá em 1974 em “O Viajante” (Mossafer), mostrando o menino que fingia tirar fotos das pessoas com uma câmera sem filme, que se aprofunda no já lembrado “Close-up” e o impostor que se fazia passar por Makhmalbaf. Com “Cópia Fiel”, mais uma vez Kiarostami reafirma-se no time do “Verdades e Mentiras” (F for Fake, 1973), de Orson Welles, não só pelo tema, mas pelos truques, pela prestidigitação.

Ainda considerando a hipótese de que a chave do filme estaria na elipse negada, é divertido também pensar que um meio de acesso possível para compreender “Cópia Fiel” é rever a frase em que Jean-Claude Carrière “ensina” ao escritor inglês, que a única coisa que a personagem de Binoche e, por extensão, todas as mulheres querem é que o homem que a acompanha coloque o braço em seus ombros. Uma visão um tanto romântica, simplista e machista da vida. Um ponto de vista que poderia bem ser da italiana da cafeteria que atende ao casal, que defendeu ideia em sintonia: “o que importa é ter marido”.

Ao mesmo tempo, o conselho de Carrière ao escritor, depois do detalhe do braço nos ombros, continua: “sejamos felizes, para que complicar as coisas?” Testando a teoria,  o escritor coloca o braço sob os ombros da suposta esposa e a tragédia anuncia-se:  nada parece mudar. Talvez não seja o caso de dar demasiada importância a esta entrada rápida de Carrière em cena, contracenando com uma mulher que não é sua esposa (a atriz francesa Agathe Nathanson). Mas difícil aceitar que ele esteja ali apenas para representar o casal na maturidade. Carrière, sua persona, será sempre associada ao trabalho como roteirista de Luis Buñuel. Assim, as boutades que profere no filme de Kiarostami têm um quê de Buñuel. Do machismo ao nonsense, da sabedoria à ironia.

A última imagem do filme mostra dois sinos tocando descompassados. Enquanto um vai para um lado, o outro vai na direção contrária. A câmera se afasta e ouvimos os sons de outros sinos, de outras igrejas (estamos na Itália!). A harmonia vem do descompasso?


FONTE
Revista Teorema
Edição nº 17
Páginas 22 a 26
Dezembro de 2010

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