O cinema que passa na TV

O cinema que passa na TV

 

Passados 55 anos de existência da televisão no Brasil, pela primeira vez um grupo de pesquisadores ligados a linha teórica da Economia Política da Comunicação e dos Estudos Culturais Críticos realiza – a convite do Governo Federal – uma cartografia da produção audiovisual brasileira na rubrica produtos culturais de entretenimento para TV aberta e por
assinatura.

Neste percurso, adotamos o ofício de cartógrafos da comunicação para mapear os produtos audiovisuais brasileiros veiculados em 2005. Sabemos que a cartografia não determina uma metodologia, mas ” (…) propõe uma discussão metodológica que se utiliza na medida que ocorrem encontros entre sujeito e objeto em uma perspectiva de acolher a vida em seus momentos de expansão” (KIRST, GIACOMEL, 2003:91).

Justifica-se a composição de técnicas de investigação, como o fizeram Caparelli e Lima (2004), para que seja contemplada a complexidade do objeto estudado, observadas as mudanças em processo e pensadas estratégias futuras capazes de corrigir distorções encontradas. Desse modo, servimo-nos das ferramentas analíticas da Economia Política da
Comunicação, por sua abordagem macro-estrutural sobre a mídia e a produção audiovisual, bem como sobre a concentração dos meios de comunicação em um cenário midiático capitalista. Para além dela, no entanto, são necessárias outras abordagens, como as que dizem respeito à cultura aí implicadas – daí o recurso aos Estudos Culturais Críticos.

Segundo Jesus Martín-Barbero, a TV contemporânea nos mostra uma nova cartografia da sociedade, o que exige uma igualmente inédita análise, que não se restrinja à dimensão política ou econômica. Diante de tais mudanças, é preciso incluir variáveis sócio-culturais, entre as quais o receptor desempenha papel fundamental.

Esta pesquisa, que se pretende ampla e transdisciplinar, situa-se no campo da análise da produção dos produtos audiovisuais de entretenimento realizados no Brasil e divulgados nas TVs abertas e por assinatura em 2005, tendo como fonte primária os principais jornais do país, seja na versão impressa ou on line.

De acordo com a legislação brasileira, o termo audiovisual é amplo o suficiente para abarcar produtos realizados para o cinema e para TV. Trata-se de “produto de fixação ou transmissão de imagem com ou sem som, que tenha a finalidade de criar a impressão de movimento independentemente dos processos de captação, dos meios utilizados para a sua veiculação, reprodução, transmissão ou difusão do produto” (BRASIL, 2004e).

Tal definição vale para cinema, televisão (por assinatura ou aberta) e rádio. No entanto, dada as possibilidades deste projeto e o tempo exíguo para executá-lo, a área de rádio (AM e FM) ficou fora deste primeiro mapeamento da produção audiovisual brasileira, mas esperamos que o projeto possa ter continuidade para oferecer a cartografia da produção de rádio AM e FM no Brasil, um estudo até então inédito no país.

A partir dessa compreensão, o presente relatório contém o levantamento da produção audiovisual brasileira abarcando as cinco regiões do país (Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste) nas áreas de TV (aberta e por assinatura) e cinema, realizando levantamento e analisando a produção em cada região no ano de 2005. Neste trabalho nos interessou conhecer a produção nacional em rede e também a produção de emissoras independentes, com ênfase na produção local das TVs abertas e por assinatura. No caso do cinema, a opção analítica recaiu particularmente sobre a visibilidade dada à produção nacional pelas TVs abertas e por assinatura e o que foi produzido (ou estava em fase de finalização) em 2005 nas diferentes regiões, sejam documentários ou produtos de ficção.

Ter domínio sobre o que é produzido no campo audiovisual brasileiro e o que é apresentado ao público é estratégico para o estabelecimento de políticas públicas e para garantir o estado democrático e a regulação do setor. Mas outras razões podem ser apontadas.

Uma delas é a abrangência do setor na economia nacional. O mercado de TV aberta no Brasil é de US$ 3 bilhões anuais, quantia que é dividida entre seis redes privadas nacionais – Globo, SBT, Bandeirantes, Record, CNT e Rede TV (ex-Manchete). Elas possuem 138 grupos afiliados e controlam 668 veículos, entre TVs abertas e por assinatura, rádios AM e FM, jornais e revistas impressos e on line, editoras, agências de notícias, portais de Internet, empresas de vídeo, produtoras e empresas discográficas. Como se fosse pouco, possuem uma programação de 24 horas dirigida para toda população brasileira e a característica de fazer um corte vertical pelos diferentes grupos sociais, garantindo uma audiência da classe AA à classe DD.

A maioria da população, principalmente aquela com poucas condições financeiras para desfrutar e/ou pagar outras opções de lazer, tem na TV sua principal distração. De acordo com dados do Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (EPCOM), em agosto de 2005 os brasileiros viam 3,5 horas de TV por dia, sendo que 81% da população o fazia todos os dias.

Outro motivo para este mapeamento, tão importante quanto o primeiro, é que seu conteúdo contribui fortemente para a construção das identidades, para a construção do conhecimento e para a formação do imaginário social dos brasileiros sobre si mesmos e sobre a nação. Sabe-se que a mídia mostra o seu ponto de vista sobre a realidade e sobre o mundo, colaborando na conformação da realidade social, incidindo sobre a conduta de cada cidadão e, em decorrência, sobre as representações e o desenvolvimento do país.

Na sociedade contemporânea, há uma forte tendência para que a mídia torne-se o principal espaço de socialização, conforme assinalam Braga e Calazans (Braga e Calazans, 2001). Isso ocorre particularmente em países como o Brasil, onde mais de 90% da população tem na mídia sua principal (e às vezes única) fonte de informação e lazer (CASTRO, 2004, 2005).

Neste estudo consideramos que o audiovisual se trata de um produto diferenciado. Isso torna cada vez mais imprescindível seu mapeamento já que é grande sua influência naquilo que os cidadãos conhecem sobre si próprios e sobre a sociedade em que vivem (ORTIZ, 1994).

Sobre a questão das identidades culturais, vale lembrar também o pensamento de outros dois pesquisadores da América Latina, preocupados com essa questão. O primeiro é Jesus Martín-Barbero, que compreende os meios de comunicação como lugar de construção de identidades, além de ser um espaço de mediação social marcado por modernidades e
descontinuidades.

O segundo é Nestor Garcia Canclini. O pesquisador argentino que adotou o México para viver e trabalhar, entende a identidade como uma narrativa que se constrói; um relato reconstruído incessantemente e não uma essência dada por uma vez e em forma definitiva. Por isso, mais uma vez ressaltamos a importância do estudo da produção audiovisual
brasileira e o seu mapeamento nacional.

Outros motivos podem ser apontados para justificar o desenvolvimento deste projeto de caráter quali-quantitativo que se constituirá no primeiro mapa da produção audiovisual brasileira por abranger as TVs abertas e por assinatura:

•Um deles é o predomínio de grupos midiáticos internacionais no controle da mídia brasileira. Analisando a mídia mundial, percebe-se que os grandes impérios, como a Time Warner e a News Corporation, tentam determinar o que deve ser posto em evidência nos países onde atuam. E isso acaba atingindo o conteúdo da programação. Um risco é que a cultura e os interesses dos países desenvolvidos sejam postos em evidência e que o estímulo e visibilidade da cultura local e/ou regional seja reduzida. Este estudo poderá dar um panorama atualizado da produção audiovisual nas diferentes regiões do país, dando subsídios para a definição de políticas públicas para o setor.

•No Brasil, assim como na maior parte do mundo, há um privilégio de exibição de filmes norte-americanos nos cinemas (e na TV). Diante disso, o indicador de ocupação de salas por produtos internacionais, no território nacional, chega a 65%, segundo dados de 2004. Este estudo poderá colaborar para identificar as diferenças regionais e os níveis de produção local.

•Na televisão aberta, as realizações audiovisuais nacionais sobrepõem-se, mas, na TV por assinatura, há uma predominância de canais que transmitem direto dos EUA, embora empresas norte-americanas como HBO ou a FOX tenham anunciado recentemente (FSP, 31/10/05) o investimento na co-produção de séries nacionais. Um estudo atualizado poderá determinar os percentuais de produção realizadas em parcerias, de produção nacional e de produção internacional, já que dados de 2002 da Associação Brasileira das TVs por Assinatura (ABTVA) apontavam que apenas 5% dos conteúdos audiovisuais apresentados eram nacionais.

•Apenas três grupos familiares nacionais estão em quase 100% do território brasileiro. É possível observar ainda que os grupos regionais estão em mãos de famílias de políticos ou possuem parceria com as principais redes de TV dominando mais de 70% dos locais onde atuam5. Isso significa que eles têm uma grande influência política e cultural nos lugares onde atuam. A análise da produção audiovisual brasileira poderá comprovar que tipo de produção está sendo realizada pelos grupos regionais, assim como o espaço oferecido a valorização e visibilidade da cultura local, seja no âmbito da TV ou do cinema.

•A mudança na legislação em dezembro de 2002 que permitiu o crescimento do número de empresas pertencentes a grupos religiosos. Como observaram Caparelli e Lima (2004), só a Rede Record, por exemplo, tem 79 emissoras de TV. Aliás, a Record anunciou em 2005 o interesse de concorrer com a Rede Globo na área de produção ficcional e, para isso, já contratou equipe de profissionais (atores, diretores e equipe técnica completa: câmeras, iluminadores, produtores e diretor de fotografia) todos vindos da Rede Globo. O presente estudo poderá demonstrar também o papel das empresas religiosas na produção audiovisual brasileira.

Este trabalho inspira-se em pesquisas já realizadas no Brasil, as quais citamos na condição de precursoras no final dos anos 70 e começo dos 80, respectivamente, José Marques de Melo e Sérgio Caparelli. Eles apresentaram uma metodologia de análise de uma semana da programação em horas semanais e porcentagem, separando as categorias e gêneros dos programas.

Na década de 90, mais especificamente em 1996, Sandra Reimão e um grupo de pesquisadores em São Paulo utilizou a mesma metodologia para realizar a análise da programação durante o período de 1965-1995, com o objetivo de estudar as tendências dos gêneros na TV brasileira.

Além deles, podemos destacar os trabalhos de César Bolaño (1988) – um dos coordenadores regionais desta pesquisa – e José Carlos Aronchi (2004), coordenador do presente estudo no Estado de São Paulo. Enquanto Bolaño destacou-se pela preocupação com a articulação entre Economia e Política para mostrar a concentração da mídia televisiva, organizando uma teoria televisiva, Aronchi realizou o primeiro manual sobre gêneros e formatos de TV, a partir de estudo da programação das principais rede de TV abertas de caráter privado elaborado em 1996.

Finalmente, em 2005 os pesquisadores Antonio de Andrade e Sandra Reimão estudaram as correlações entre televisão e cinema brasileiro no período de 1980 a 2000. O levantamento da presença do cinema brasileiro, especialmente longas-metragens de ficção na programação da televisão aberta nos últimos 21 anos tem a única ressalva de restringir a
pesquisa ao Jornal da Tarde (SP), mas colaborou para dar subsídios a este estudo.

Principalmente porque revela dados estarrecedores: em 21 anos, houve um total de 1957 transmissões de filmes nas principais TVs abertas, contudo a inserção de filmes brasileiros não passou da casa das 140 exibições por ano.

A produção audiovisual cinematográfica aparece neste estudo de forma transversal, já que o projeto trata da produção audiovisual de programas de entretenimento em TVs abertas e por assinatura, onde incluímos a categoria analítica filmes. Afinal, o cinema faz parte do leque das produções audiovisuais brasileiras, seja na forma de ficção ou de documentários, através de longas ou curtas-metragens. Buscamos neste estudo observar o aproveitamento da produção nacional cinematográfica nacional por parte das TVs abertas e por assinatura, além de mapear o que tem sido produzido ou estava em fase de produção em 2005.

Este levantamento de 2005 poderá colaborar com futuros estudos de mapeamento dessa mesma produção, para descobrir se as obras chegaram a ser divulgada nas TVs abertas e por assinatura ou se chegaram às salas de cinema comerciais. Também colabora no sentido de mostrar o esforço dos realizadores audiovisuais para dar viabilidade financeira e visibilidade às suas obras.

No que diz respeito ao estudo das TVs por assinatura os dados não são nada animadores. Entre os canais da NET, único com “responsabilidade” de mostrar a produção cinematográfica brasileira é o Canal Brasil, limitado aos assinantes do pacote Premium da NET. Como se não bastasse, em levantamento realizado durante quatro meses nos canais da NET – operadora que possui 60% dos assinantes brasileiros – apenas 7,4% dos mais de 6 mil filmes apresentados eram longas-metragens nacionais.

O presente estudo também levou em conta o Estado da Arte nos estudos sobre a produção audiovisual brasileira nas cinco regiões para traçar a cartografia nacional do setor em 2005, pois consideramos que para compreender o presente e pensar estratégias para o futuro precisamos observar o passado e os caminhos trilhados até então, seja na definição de políticas públicas ou nas escolhas teóricas do campo acadêmico.

O trabalho foi separado em duas partes. A primeira parte do relatório possui um teor mais teórico, onde é apresentada a metodologia e o contexto em que se desenvolve a produção audiovisual no Brasil, assim como o marco teórico, baseado na Economia Política da Comunicação e nos Estudos Culturais Críticos, onde discutimos rapidamente a influência da globalização da economia e da mundialização da cultura no desenvolvimento das empresas de comunicação do país. Ainda na primeira parte deste relatório apresentamos um rápido panorama das TVs abertas e das TVs por assinatura (TVAs).

Na segunda parte do relatório, continuamos o trabalho cartográfico, agora região por região, para conhecer a produção audiovisual brasileira na rubrica entretenimento em 2005. E incluímos no final do estudo alguns anexos que podem colaborar para uma reflexão sobre temas que não tivemos tempo para abordar com mais profundidade. Este é o caso das TVs
Comunitárias, relatada pelo pesquisador Álvaro Benevenuto Jr., das universidades como espaço de fomento a novos profissionais e à realização audiovisual, comentado pela pesquisadora Patrícia Saldanha, ou ainda da TV Legislativa de Minas como experiência cidadã, reportado pelo pesquisador Leonardo Vidigal.

Finalmente, aproveitamos o levantamento jornalístico realizado pela revista Meio & Mensagem em 1999 sobre a produção local das principais emissoras de TV abertas comerciais do país. A partir desta fonte primária, fizemos um estudo comparativo entre a produção local daquele período e a produção local das emissoras localizadas nas capitais brasileiras na rubrica formatos de entretenimento. Tal comparação nos permitiu visualizar o 28 que mudou no cenário televisivo brasileiro em termos de produção local nos últimos seis anos (1999-2005).

Temos consciência de que as definições para o audiovisual, sejam voltados para o cinema e para a TV (ou para as possibilidades que advém da convergência tecnológica) estão diretamente ligadas à soberania nacional, já que os conteúdos divulgados colaboram na formação de valores e sobre o que os brasileiros pensam a respeito de si mesmos e do mundo.

Para além do âmbito simbólico, trata-se também de um setor importante da economia nacional que, num futuro próximo, não poderá restringir-se ao cinema, as TVs aberta e por assinatura ou ao rádio, mas deverá ser pensada de forma convergente com os celulares, Internet e demais tecnologias digitais, como o Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD).

Faça o download e confira a pesquisa na íntegra.

Foto: Marcello Casal Jr/ABr