O filme nacional nas telas

O filme nacional nas telas

 Por Hadija Chalupe da Silva*

Este estudo tem como objetivo fazer uma análise comparativa das formas de difusão e comercialização do filme nacional no mercado brasileiro contemporâneo, a partir da investigação de diferentes formatos de distribuição: dos filmes feitos com uma grande campanha de lançamento (distribuição com mais de cem cópias para exibição), dos filmes médios (abaixo de cem cópias), dos filmes miúras (filme de difícil entrada no mercado, em que o lançamento é feito com o menor número de cópias em sua exibição) e dos filmes que conquistam o mercado externo antes de iniciar sua carreira comercial nacional. Com este intento, foram utilizados como objeto de estudo cinco filmes lançados no ano de 2005: Dois filhos de Francisco, de Breno Silveira; Cabra-cega, de Toni Venturi; Casa de areia (foto acima), de Andrucha Waddington; Cidade baixa, de Sérgio Machado e Cinema, aspirinas e urubus, de Marcelo Gomes.

Para a construção de nossas considerações sobre a conjuntura do mercado cinematográfico, partimos do pressuposto de que o cinema é a linguagem da confluência. Dizemos isso tendo como foco dois pontos: o primeiro é a construção e articulação da narrativa ao relacionar diferentes e divergentes manifestações artísticas, tendo como objetivo a expressão de um ponto de vista. Com relação a esse ponto, dizemos que o cinema “constitui o locus ideal para a orquestração de múltiplos gêneros, sistemas narrativos e formas de escritura” (STAM, 2003: 26). Já o segundo ponto, que nos interessa mais neste caso, diz respeito a como o cinema se relaciona com o meio, articulando dois campos originalmente distintos: a arte e a indústria. Como aponta Rosenfeld:

O filme, como arte, se transforma em meio de expressão – usando como veículo a cinta de celuloide. E, como meio de expressão peculiar e inconfundível, o filme, feito de luz, imagem e movimento, invade o terreno da arte. Por isso, o filme, quando simplesmente reproduz uma peça teatral de valor estético, não é uma obra de arte – é apenas veículo de comunicação e reprodução que fixa, multiplica e divulga uma obra de arte por meios mecânicos. Todavia, quando se apodera da mesma peça, refundindo-a, recriando-a segundo seus próprios meios de expressão, deixa de ser um simples veículo e transforma-se, eventualmente, em arte genuína. (2002: 34-35)

A partir dessa afirmação, o teórico aponta que a historiografia do cinema deve ter consciência de que seu objeto é embrionariamente constituído a partir da relação dialética entre a criação (como os meios estéticos serão articulados para obter determinados efeitos) e o consumo (disponibilização do produto no mercado com o objetivo final de obter lucro). Ele indica que, como toda arte, é da própria essência do cinema a realização de uma “síntese maravilhosa de autoexpressão individual e de comunicação social” (ROSENFELD, 2002: 39). O cinema, portanto, é visto como uma forma de espetáculo que alia os elementos essenciais à organização de “nossa vida psíquica e ao verdadeiro sentido de cultura”, numa relação em que arte e entretenimento não se excluem.

Só uma parcela do entretenimento é arte, mas toda arte é – para aqueles que a amam – entretenimento e prazer. Não dizia Cervantes que toda grande obra de arte entretém e diverte serenamente o espírito? (…) É através da superfície do entretenimento que a arte [neste caso, o cinema] nos conduz imperceptivelmente aos mistérios mais profundos da vida. O fato, portanto, de que o cinema é uma indústria do entretenimento não exclui a produção de arte. (ROSENFELD, 2002: 42)

Entretanto, é impossível que a realização de um filme se concretize sem o investimento de capital e, principalmente, sem uma mínima organização industrial. Isso porque, para que o filme chegue ao espectador, ele também deve passar por um processo de circulação de “produto”, como qualquer outro que seja colocado no mercado, como aponta Luiz Gonzaga de Luca:

A sociedade industrial pressupõe os mecanismos de produção, de distribuição e colocação do produto à disposição do consumidor nos pontos de venda. Nesse sentido, o filme atende a estas características como qualquer outro bem de consumo. Se assim não fosse, estaríamos falando de uma produção artesanal, onde a circulação do produto fica restrita às pontas do produtor e o consumidor, sem a intermediação de terceiros e sem a preocupação da venda maciça. Alguns produtos cinematográficos obedecem este último tipo de circulação, porém, a estrutura da indústria cinematográfica está montada para o atendimento de um grande número de consumidores. (2008)

Ela também depende de equipamentos específicos (câmeras, gruas, travellings, equipamentos de som, ilha de edição), de profissionais altamente qualificados (diretores, técnicos e atores), de matéria-prima (filme fotossensível ou fitas digitais) e, principalmente, de uma infraestrutura empresarial complexa, que atenda a todas as fases de elaboração, constituição e comercialização do filme, criando uma estrutura que demanda grandes investimentos de capital.

No caso da indústria cinematográfica (…) não só a exploração distribuição/comercialização],mas a própria criação requer capitais consideráveis e, por isso, a empresa, ao encomendar a confecção de um filme, forçosamente tende a impor desde o início os princípios que lhe parecem certos. (ROSENFELD, 2002: 36)

Nesse trecho, fica explícito um dos pontos negativos da relação entre arte e indústria. Os padrões de relacionamento com a cultura, em se tratando de indústria cultural, mudam, uma vez que ela passa também a ser concebida como um “investimento comercial” (ORTIZ, 2001: 144). Este é o grande choque da indústria do entretenimento: como conciliar uma forma de expressão artística (bens intangíveis) com os interesses de compra e venda de produto (bens tangíveis)? Essa fórmula, quando descoberta, é repetida à exaustão, fazendo com que a obra siga certos padrões comerciais que nem sempre se adéquam às reais necessidades do produto artístico. Outro ponto negativo é a limitação da liberdade artística em detrimento das imposições por parte dos investidores, os quais possuem “em suas mãos” o controle do que será ou não veiculado.

Da constituição da narrativa clássica de Hollywood até sua consolidação como linguagem cinematográfica hegemônica, passando pelas reivindicações dos cinemas nacionais (Neo-realismo, Nouvelle Vague, Cinema Novo, Nuevo Cine, entre outros), a relação dialética entre criação e consumo foi (é e será) a força motriz das diferentes teorias e movimentos cinematográficos. Isso na medida em que questões estéticas estão ligadas a questões éticas, políticas e sociais que perpassaram esses mais de cem anos de cinema (STAM, 2003).

Por se tratar de um meio expressivo que manipula em ampla escala os valores culturais, é importante que sejam analisados os aspectos econômicos, técnicos e, principalmente, político-sociais que permeiam essa linguagem. Desse modo, a partir da necessidade de um melhor conhecimento dos mecanismos que regem a comercialização do filme nacional em nosso mercado, esta pesquisa teve como objetivo obter dados os mais concretos da atividade econômica na qual a indústria cinematográfica nacional está estruturada, como os mecanismos de comercialização estão se articulando hoje e quais seus resultados.

*Trecho da introdução do livro “O filme nas telas: a distribuição do cinema nacional”, de Hadija Chalupe da Silva, selecionado no Prêmio SAV para Publicação de Pesquisa em Cinema e Audiovisual (2009-2010).

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